Capital demasiado humano

de Carolina Sanchez Miranda em 8 de agosto de 2012





As empresas estão vulneráveis, sobretudo no que se refere Í s pessoas. Em meio a uma época de discurso sobre atração e retenção de talentos, o risco de perder a capacidade intelectual e produtiva de seus profissionais é grande. E ele precisa ser gerenciado o quanto antes. Essa é a avaliação de Luis Adonis Correia, autor do livro Riscos do capital humano – Talentos, processos e crenças (Brasport). Na verdade, ele acredita que esse risco recebe “a denominação imprecisa e o tratamento indevido de ´retenção de talentos´”, algo que não vem sendo criticamente analisado, como diz na entrevista a seguir. Sócio-diretor da Tribo Capital, consultor, coach e facilitador em modelos estratégicos de gestão de pessoas e processos de mudança, Correia fez para a MELHOR, durante seis anos, o cartoon coffee-break, que retratava o cotidiano corporativo. Depois, também para a revista, foi o responsável pela coluna El lobo Fischer, na qual respondia a dúvidas de leitores com um humor afiado.


Qual é o principal risco que envolve capital humano?
A perda, por parte da organização, da capacidade intelectual e produtiva de seus profissionais é um risco que precisa ser urgentemente gerenciado. Esse risco, que recebe a denominação imprecisa e o tratamento indevido de “retenção de talentos”, não vem sendo criticamente analisado. Antes mesmo da conceituação de talento, há que se começar pelo que chamamos de capital humano: por que o chamamos assim, que implicações apresenta e como gerenciamos suas interfaces. É o que exploro no livro. Tanto o comportamento atual dos gestores quanto as políticas e práticas organizacionais adotadas vêm aumentando a perda de capital humano. Essa perda se manifesta de diferentes formas, mas todas se caracterizam por uma perda física ou potencial da capacidade intelectual e produtiva do quadro de profissionais. Afetam diretamente os resultados. Não se trata de conceituar os riscos que envolvem capital humano em termos de probabilidade estatística objetiva. O julgamento que se faz é possível e evidente porque esses riscos já se tornaram uma experiência, um estado interiorizado e vivenciado. Analiso no livro os riscos que são gerados, ocasionados ou permitidos por práticas de gestão que ignoram potencialidades, desejos e receios dos profissionais em suas organizações. É mesmo um capital demasiado humano.


No livro, você fala do enfrentamento de questões negligenciadas ou mal administradas na seara organizacional. Por que isso ocorre?
Embora os riscos e a incerteza pautem o cotidiano da vida profissional, são poucos os gestores conectados e preparados para planejar e executar uma gestão de risco em capital humano. Dos estágios existentes – identificação, quantificação, resposta (ação) e monitoramento (controle) -, a gestão de riscos consta de pelo menos uma dessas ações: evitar (por eliminação, retirada ou não envolvimento); reduzir (mitigar ou otimizar); transferir (compartilhar, com garantia ou seguro); e aceitar (absorver o risco e, conforme o impacto, orçá-lo). Um gestor não engajado não percebe risco algum. Um gestor engajado, mas sem a competência para agir, aguarda para saber: se o problema vai realmente ocorrer – afinal, risco tem probabilidade; se o problema atingirá sua organização enquanto ainda estiver trabalhando lá – se já tiver saído, alguém mais se encarregará do problema; se haverá uma solução, gerada em algum lugar, quando o problema atingir a organização.


E qual a relação entre engajamento e esse risco?
Se a relação mantida entre profissionais e organizações é tênue, efêmera, o engajamento é baixo. A falta de engajamento banaliza o risco. E esse risco não justificaria um motivo real de preocupação, um motivo para agir. A inação acaba sendo a escolha mais frequente. Não é de estranhar que muitos deixem a organização quando percebem que o navio pode bater no iceberg. O que é de estranhar é o recebimento daquele e-mail de despedida, dizendo que estão indo para outra empresa porque gostam de desafios. Se gostassem mesmo de desafios, não sairiam naquele momento.

No contexto de capital humano, você critica várias práticas de gestão, pontuando crenças e mitos. Por que eles se mostram tão presentes organizações?
Há uma frase do G. K. Chesterton [escritor inglês, 1874-1936] que diz que “quando os homens deixam de acreditar em Deus, não significa que eles passam a acreditar em nada; eles passam a acreditar em qualquer coisa”. Não quero estabelecer uma discussão espiritualista, mas a mensagem derivada para as organizações é que, devido Í  ausência de um “imperativo categórico de business”, Í s armadilhas de uma ciência da gestão e Í  baixa compreensão das dimensões da performance humana, passou-se, histericamente, a procurar e acreditar em toda e qualquer bobagem que aporta no cais da gestão de empresas, sem qualquer barreira aduaneira. Os produtos dessa Fantástica Fábrica de Bullshitagem são largamente aceitos, ainda que de qualidade duvidosa e altamente perecíveis. Mas o que importa, parece ser, é adquiri-los. Quanto a crenças, pensei em estabelecer essa analogia quando li o trabalho do Bourdieu [Pierre Bourdieu, sociólogo francês], A produção da crença, falando da contribuição para uma economia de bens simbólicos, que destacava o poder simbólico e seus modos de distinção social. Como havia uma inserção na construção de uma teoria interpretativa da cultura, imaginei como seria considerando a cultura organizacional. O campo social presente nas organizações é também o campo de embates entre agentes (atores do processo) e instituições (estruturas que lhes dizem respeito), onde esses agentes, na grande maioria das vezes, não questionam o jogo, mas como entrar no jogo. Há uma relação de forças caracterizada pela imposição de preferências, sabendo que existir é diferir. Na disputa por essa diferenciação, sobressai a capacidade de converter o crédito da própria competência em vantagem competitiva (capital econômico) para a organização.


#Q#


E sobre os mitos?
Quanto ao mito, a sociedade pós-industrial é uma sociedade de ritual, na qual fazer é mais exigido do que crer. Organizações criam, utilizam e reciclam mitos, sob concepções erradas ou não, até que se duvide ou se esqueça do significado original. A palavra “mito” ainda tem muita ressonância, embora seu sentido original tenha se esvaído: passou a ser mais frequentemente usado, nas organizações, com o sentido de uma inverdade, coletiva ou não, consciente ou não. Mas, em sua origem, o mito conta uma história sagrada, narra um fato importante ocorrido no tempo primordial. Mesmo em sua concepção pura, de narrativa, passa por interpretações variadas e divergentes.


Ainda sobre mito: qual seria o mais relacionado com capital humano?
Considero o mito de Prometeu [Prometeu Acorrentado, de Ésquilo, 525 a.C.- 456 a.C.] o mais emblemático para a vida organizacional. Prometeu ensina o fogo aos homens, um segredo que somente os deuses conheciam. É um agente transformador. O fogo é instrumento de transformação, de criação, de sociabilidade (era ao redor do fogo que os humanos se reuniam), representa a espiritualização (luz), a sublimação (calor), mas é também agente de destruição. Prometeu representa uma humanidade ativa e industriosa. Os deuses fizeram com que fosse punido por sua ousadia de criar uma humanidade capaz de forjar sua própria civilização. Há sacrifícios em progredir. Esse mito ganha mais força em sua abordagem humanística, que se preocupa e se ocupa com o que acontece na sociedade, que tira proveito da tecnologia sem se tornar vítima desta. Espero que do mito se mantenha a capacidade de socializar, de colaborar e de transformar.


A sua análise de riscos e crenças abrangeu também posturas e ações da área de RH. Em sua opinião, que papel ela deveria desempenhar para buscar a efetividade que você diz que falta?
A área de RH perdeu, nos últimos 20, 25 anos, excelentes oportunidades para fazer seus gols. Quem não faz, leva, diz a sabedoria popular. Qualidade total, gestão do conhecimento, implantação de ERP etc., são exemplos de desperdício, por parte de RH, de não ter capitalizado tais iniciativas como devia. Some-se a isso a procura constante por um papel. Tenho receio de que, depois de ter sido oriundo de papelada (o departamento pessoal), essa busca por papel não termine em papelão. O papel de consultor interno, escolhido pelo RH de muitas empresas como “o papel”, é um equívoco, apesar das boas intenções.


Qual a razão desse equívoco?
Chamar de consultor pressupunha duas características da (boa) consultoria: a capacidade de ouvir (e, portanto, se aproximar) e a capacidade de informar, de ter conhecimento. Só que essas características são as mesmas do serviço social, por exemplo, e não foi isso que o fez decolar nem desaparecer. Mas consultor não é deliberativo: ele recomenda. A questão é que a área de RH deve e precisa ser deliberativa. Ela tem de ter poder. Sei que isso pode ferir os ouvidos de uma turma reconhecidamente gente boa, que “não quer essas coisas de poder”. Acho que devem, sinceramente, procurar outra área. É fundamental para o desenvolvimento de RH, e da organização, que haja um poder de deliberação maior. Efetividade vem da capacidade de compreender, promover a mudança e gerir os fatores que impactam a performance humana nas organizações. Mudança envolve percepção (entendimento do cenário e de como agir) e prontidão (reconhecimento da urgência, das competências e dos níveis de proficiência demandados). Por isso, é preciso abraçar mais questões de performance do que árvores, botar mais a mão na massa do que na massinha. E é preciso menos powerpoint e mais power. “Power to the People”, ainda que seja people management. As atribuições são muitas, mas há de se verificar se a área de RH é só very busy ou very business.


Um dos tópicos do livro tem como título “Humor é valor”. O humor tem ainda pouco espaço nas empresas ou já foi incorporado pelas práticas de gestão?
Os workshops e treinamentos têm apresentado, em seu acordo de condução com os participantes, a frase “Have Fun”. A tradução pede que o participante aproveite ou se divirta, quando, na verdade, caberia a quem conduz produzir um ambiente no qual as pessoas pudessem se divertir. Mas “have fun” é bem diferente de “be funny”. Esse é um comportamento que pode facilmente descarrilar. Por isso, há uma certa cerimônia ao realmente incentivar o humor, que hoje tem cada vez mais seus limites discutidos. Quando discuto humor nas organizações, procuro a essência de seu significado. Humor não é inconsequente. Humor é uma disposição de espírito, a capacidade de perceber, descobrir, apreciar, expressar e difundir. Por isso é um valor. Tem como ingredientes o novo, o inesperado, o surpreendente. A forma como isso atua no espírito ajuda a aprimorar o entendimento das coisas. Moliͨre argumentava que a função da comédia sempre fora a de corrigir os vícios e os defeitos dos homens. O que me parece ser uma barreira do humor em muitas organizações ainda é a capacidade de rir de si mesmo, o quanto elas permitem que suas verdades sejam questionadas, que é o que o humor, em sua essência, faz.


Discutem-se muitos temas hoje quando se fala em pessoas nas empresas: felicidade, propósito, bem-estar. O que, de fato,
vale a pena discutir?
Isso varia entre as empresas. Mas acho que o único tema que deveria estar presente em todas as agendas de discussão é ética, entendida em sua abrangência, e não com o viés brasileiro de só discutir ética na questão de roubo, de malversação de dinheiro. De qualquer forma, há pelo menos dois conjuntos de temas que devem ser discutidos. O primeiro, que se refere Í  agenda de negócios, o que é relevante para a execução da estratégia. O segundo, que se refere Í  identidade organizacional, que permite o sentimento de pertinência dos profissionais, ao entender e perceber a organização. Por exemplo, se a organização usa de acordos internos para responder Í  pesquisa de melhores lugares para trabalhar, isso é um tema que pode não ser relevante para um objetivo estratégico (expansão geográfica no exterior, por exemplo), mas precisa ser discutido como postura dos gestores. Ou ainda, se uma empresa decide que diversidade é um valor e sua primeira iniciativa é aumentar o número de mulheres em posições de gerenciamento, há de se discutir, sim, por que se optou primeiramente por isso no Brasil, que é um país no qual a mulher branca ganha mais do que o homem negro. As discussões que descortinam a identidade da empresa afetam o nível de engajamento. E não pense que pode haver engajamento se os valores da organização são desconhecidos ou não claros. Há organizações que apresentam qualidade de vida entre seus valores, ainda que as cargas horárias sejam absurdas. Que mensagem é passada para seus profissionais? Essa falta de congruência reduz o nível de engajamento. Há de se discutir então a redução da carga horária ou a revisão dos valores.

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