Gestão de pessoas na telona

de Sérgio Rizzo* em 8 de agosto de 2012






No romance Uma mulher em Jerusalém (2004), inédito no Brasil, uma imigrante na faixa dos 40 anos é morta em um atentado provocado por um homem-bomba. Descobre-se que ela trabalhava em uma panificadora, mas que não era registrada como funcionária. Curiosamente, a situação é levemente alterada no filme A missão do gerente de recursos humanos (2010), que adapta o livro do israelense Abraham B. Yehoshua. Na trama do roteirista Noah Stollman e do diretor Eran Riklis, a mulher estava registrada como funcionária, sim, mas não aparecia para trabalhar há um mês, sem que o responsável pela seção informasse as faltas ao RH. O motivo para o “esquecimento” possibilita ao filme criar, na imaginação do espectador, alguns traços da personagem que só conhecemos morta, mas não desvia a atenção do que é essencial no livro e que continua a ser na tela: o fato de que o protagonista é alguém encarregado de cuidar do material humano (dos “talentos”, como preferem alguns) que move uma empresa, vivendo alguns dilemas inerentes ao cargo.


Significado inesperado
“Mesmo que o gerente de recursos humanos não tinha procurado tal missão, agora, na manhã suavemente radiante, ele percebeu seu significado inesperado”, escreve Yehoshua – que rivaliza em prestígio, no seu país, com Amos Oz, escritor mais conhecido do público brasileiro – na abertura do romance. “No minuto em que foi traduzido e explicado a ele o pedido extraordinário da velha que vestia seu manto de monge ao lado do fogo em que morria, ele sentiu uma elevação súbita de espírito, e Jerusalém, a pobre e sofrida cidade que ele tinha deixado uma semana atrás, foi mais uma vez banhada em um brilho de importância, como tinha sido em sua infância.”

O romance começa por onde termina o filme, quando o gerente conclui afinal a ingrata tarefa que lhe foi delegada pela dona da panificadora – acompanhar o corpo da ex-funcionária até o seu país natal, a Romênia, com o objetivo de cuidar, em nome da empresa, do velório e do enterro. Na interpretação do ator ucraniano Mark Ivanir (que já trabalhou nos EUA em produções como A lista de Schindler e O bom pastor, e também em 360, o novo filme de Fernando Meirelles), o personagem adquire contornos bem humanos. Antes de assumir a gerência de RH, ele trabalhou na “divisão de operações especiais” da panificadora – na sua definição, “um pouco de logística, um pouco de improvisação, um pouco como o exército”. Seu desconforto com a nova posição, que o prende a um escritório e a funções burocráticas, é evidente. Para piorar, seu casamento está em frangalhos e a filha adolescente sente a sua ausência. Na crise desencadeada pela morte da funcionária e pela demora da empresa em reconhecer o cadáver e tomar as medidas necessárias, ele é usado pela dona da panificadora como bode expiatório. A situação torna mais concreta a sensação de que ele não encontra equilíbrio possível entre atender aos interesses da empresa e, ao mesmo tempo, dedicar aos empregados a atenção que merecem. A missão na Romênia, acredita ele, é um esforço de relações públicas, sem significado efetivo. Sua percepção do trabalho e da própria vida é alterada, no entanto, pelas experiências durante a viagem.

A imagem de abertura do filme, com produtos uniformes deslizando mecanicamente pelas esteiras da panificadora, sugere por meio da linguagem visual o desafio do gerente (e, por extensão, de qualquer área de RH): funcionários de uma empresa não são, evidentemente, pães – e tratá-los dessa forma, por atacado e como se fossem todos iguais, despreza a identidade de cada um. Outra sequência usa um elemento característico de RH, a ficha funcional do empregado, no mesmo contexto. Por não se lembrar da funcionária morta, o gerente tem apenas a foto 3×4 da ficha para identificá-la. Pouco, muito pouco. Perto do final, o filho da vítima lhe mostra, no telefone celular, um vídeo com a mãe – e só então a dimensão humana da mulher que se foi é apreendida por ele.


#Q#

A missão do gerente de recursos humanos se assemelha a outros filmes com personagens que são profissionais de RH por tratá-los como representantes das corporações para as quais trabalham. Como essas empresas tendem a ser abordadas como vilãs, parte da sujeira respinga sobre quem fala e age em nome delas. É o caso, por exemplo, do drama francês Recursos humanos (1999), de Laurent Cantet (o vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes, em 2008, por Entre os muros da escola). A trama é ambientada em um período de intenso debate trabalhista na França, em virtude da adoção da jornada semanal de 35 horas e da onda de demissões que acarretou.


Cilada moral
Um jovem estudante de administração (Jalil Lespert) retorna Í  sua cidade natal para fazer estágio no RH da indústria na qual o seu pai (Jean-Claude Vallod) trabalha há décadas. O período de aprendizado o deixa em uma cilada moral quando ele fica sabendo que a demissão coletiva a ser anunciada em breve inclui seu pai. De posse da informação, a quem ser fiel: Í  família ou Í  empresa? No filme de Cantet (que realizou ainda A agenda, outra aguda análise do mundo do trabalho), os sindicalistas também são alvejados, como se atendessem a seus próprios interesses em detrimento dos trabalhadores, mas isso não reduz a carga negativa atribuída, pelos funcionários da indústria, ao RH.

Em outro momento de retração econômica, nos EUA depois da crise financeira de 2008, a ingrata missão de anunciar demissões é parcialmente terceirizada pelo RH de diversas empresas na comédia dramática norte-americana Amor sem escalas (2009). Dirigido por Jason Reitman (de Juno e Jovens adultos) e baseado em romance de Walter Kirn, o filme traz George Clooney como o especialista em percorrer o país para planejar a comunicação dos cortes aos empregados e ajudá-los a lidar inicialmente com o desemprego. Como um médico que se habitua a dar más notícias para seus pacientes e precisa se distanciar deles para sobreviver psicologicamente, o protagonista é apresentado como um homem frio, solitário e infeliz que não demonstra nenhuma empatia pelo drama das pessoas cujas vidas serão transformadas pela sua ação. Para os recursos humanos de uma empresa, atitudes desumanas.

Já o sombrio drama francês A questão humana (2007) apresenta um contraponto a essa visão, transformando o profissional de RH da trama em uma espécie de guardião da consciência moral de uma grande corporação petroquímica franco-alemã que esconde um segredo incômodo em sua origem. Ele é um cuidadoso psicólogo (Mathieu Amalric, o vilão falsamente ambientalista de 007 – Quantum of Solace e diretor-ator de Turnê) convocado pelo seu gerente para uma missão especial interna: investigar secretamente o comportamento do diretor-geral, que estaria agindo de maneira suspeita, talvez decorrente de alguma perturbação.


Questão humana
Em primeiro lugar, o diretor Nicolas Klotz e os roteiristas Elisabeth Percival e François Emmanuel criam para o personagem uma situação eticamente desconfortável: uma evidente quebra de hierarquia lhe é proposta, em nome dos interesses da empresa e do bem-estar do executivo sob suspeita. Não lhe custa pouco aceitar a tarefa – e, Í  medida que se aprofunda nela, descobre fatos que tiram o seu próprio equilíbrio. Mais uma vez, uma grande corporação é vilanizada; aqui, a fonte da “doença” é sua natureza “psicopata” (como o documentário The corporation sugere que as grandes empresas se comportam). Mas o profissional de RH é poupado. Mais do que isso: em A questão humana, é ele quem mais se preocupa com os “quartos escuros” da companhia para a qual trabalha. Entre a cruz e a espada, há espaço também, nas representações do RH no cinema, para um personagem menos compromissado com aspectos econômicos, éticos ou psicológicos da função: o funcionário “zen” que atende o protagonista de Mais estranho que a ficção (2006), um auditor fiscal (o comediante Will Farrell), quando ele vive uma crise depois de descobrir que, na verdade, é apenas o personagem de uma história sendo escrita por uma autora com bloqueio criativo (Emma Thompson). Em um contexto fantasioso como esse, não se deve levar a sério o caráter amalucado, sem compromisso com a realidade, do tal profissional de RH. Ou não?


*Sérgio Rizzo é jornalista, professor e crítico de cinema


Compartilhe nas redes sociais!

Enviar por e-mail