Os fins e os meios

de Dum De Lucca em 9 de agosto de 2011
Corbis (DC)/ Latinstock
Em O Príncipe, o italiano Nicolau Maquiavel mostra aos príncipes os ensinamentos necessários para conquistar Estados e conservá-los sob seus domínios – uma espécie de manual de governabilidade para governantes e, hoje em dia, um guia de como administrar sua empresa

A descrição física de que se tem notícia de Nicolau Maquiavel parece não corresponder à altura de seu pensamento político. De estatura mediana, magro, fronte larga e lábios finos, talvez apenas seu olhar penetrante faça jus à sedução que sua mais importante obra, O Príncipe, venha causando, desde o século 16 em reis, rainhas e, por que não, executivos.

Quem nunca ouviu dizer que mais vale ser temido do que amado, que é preciso ter a força do leão e a esperteza da raposa ou a clássica expressão que diz que os fins justificam os meios? Aliás, é esta última ideia a fonte de muita polêmica sobre a obra desse italiano – polêmica que deve reacender com o lançamento de O Príncipe Revisitado: Maquiavel e o Mundo Empresarial (Actual Editora), escrito por Luís Roberto Antonik, mestre em gestão empresarial e diretor-geral da Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e TV (Abert), e por Aderbal Nicolas Müller, doutor em ciências sociais. O livro traz, para os dias de hoje, os 26 capítulos da obra original, situando-o no mundo corporativo – que, muitas vezes, diga-se, parece abrigar reis, rainhas e castelos modernos. A cada página, o leitor tem a possibilidade de identificar a si mesmo, encontrar acertos e, na maioria das vezes, erros que são cometidos, e perceber como Maquiavel achava prudente trilhar caminhos de sucesso.

A obra foi reescrita utilizando exemplos atuais, tornando o livro semelhante a um manual de comportamento empresarial. É uma releitura com o cuidado de adaptar os exemplos do comportamento de liderança medieval da época ao contexto empresarial no mundo contemporâneo. Luís Antonik, em entrevista exclusiva à MELHOR, explicou de que forma, e por qual motivo, escolheu um clássico da literatura mundial para passar mensagens aos empresários e gestores.

MELHOR – Ao tratarmos da obra de Maquiavel, vem à mente a ideia de que os fins justificam os meios – algo que ganhou uma conotação bem negativa, diga-se. Não seria um pensamento deslocado numa época em que as empresas falam mais e mais em ética e práticas transparentes?
Luís Roberto Antonik –
Um aspecto interessante na leitura de Maquiavel é que ele escreveu isso dentro de um contexto, em 1512. Há um trecho que diz o seguinte: “Se você der ou empenhar a sua palavra e, de alguma forma, isso depois vier a prejudicá-lo no futuro, quebre”. Aparentemente, se for interpretado só esse pedaço, soa antiético, mas se houver uma compreensão da totalidade do capítulo, a pessoa perceberá que ele quer dizer: “Vá até aquele ao qual você empenhou a sua palavra e diga que você não poderá mais cumpri-la”.

Assim, essa interpretação, que estigmatizou Maquiavel, deixa de ter esse caráter.
Esse contexto de que os fins justificam os meios, na verdade, significa que o sujeito deve ter o máximo empenho para atingir seus objetivos, não importa como se faça; mas em instante nenhum ele diz que você tem de ser desonesto, passar a perna, ou suprimir alguma coisa de alguém. O que diz é sobre o máximo esforço, realizar tudo o que for necessário para atingir o fim pretendido. E, se for um fim justo, ele justifica os meios. São 26 capítulos nos quais a mesma frase é repetida: não tire aquilo que é dos outros, não seja injusto, não construa a sua riqueza baseado no infortúnio dos demais. Maquiavel passou para a história como um sujeito malévolo, porém, uma leitura mais apurada, mostra que ele não é nada disso.

#Q#

Por que uma grande empresa deve ser obsessiva e saber tudo, como fica claro no livro?
Maquiavel cita personagens como Lourenço II, potentado da família dos Médicis, e nós também utilizamos personagens, como Abílio Diniz e Antônio Ermírio de Moraes. Se pensarmos no segundo, vemos que ele é um chefe que sabe de tudo, é o primeiro a chegar e o último a sair na empresa, conversa e se mistura com os colaboradores sem ser licencioso, anda pelo chão de fábrica. É um empresário de sucesso porque conhece o negócio como ninguém, ouve a todos, mas executa os procedimentos exatamente como ele quer. Não adianta você conquistar um novo reino e ficar encastelado em torno do luxo e esquecer que a população existe. É preciso conhecer os detalhes de cada aspecto. Maquiavel também aconselharia que bancos públicos de fomento social utilizassem suas verbas em causas mais nobres do que empréstimos que financiassem fusões entre empresas privadas, ainda mais se elas estivessem concentrando e monopolizando alguma fatia do mercado. Quanto mais poder, maior é a exploração, e, aí, a empresa obsessiva pode se tornar opressora. E, levando-se em conta as pessoas, toda fusão que tem por objetivo ganhos de escala evidentemente vai efetuar cortes porque, por exemplo, se antes eu vendia 50 e vou passar a vender 100, só vou precisar de uma área de marketing, e assim por diante.

Como um livro escrito no século 16 pode servir de exemplo na gestão contemporânea?
O mundo empresarial é um ambiente difícil para sobreviver. Maquiavel tem um capítulo que aborda a incorporação de novos Estados. Transpondo isso para a aquisição de uma nova empresa, ou se você assumir uma nova companhia, Maquiavel sugere matar todos os herdeiros, inclusive os bebês. Na realidade atual, quando uma companhia incorpora outra, é preciso acabar com a cultura da incorporada. Não se podem manter duas estruturas. Isso não significa, obviamente, que os talentos não sejam mantidos. Esse é um conselho que ele deu há 500 anos e que é perfeitamente válido em uma gestão atual eficiente.

Como foi estruturar e ligar os capítulos da obra original com a realidade atual?
A estrutura do texto original permite que, com uma simples troca do nome dos capítulos e com a mudança dos personagens de governantes para gestores, aconteça um encaixe natural. Isso porque ele mantém uma lógica: como o sujeito consegue conquistar um principado por herança; ou aquele que foi incorporado pela guerra etc. Usamos a mesma lógica para as empresas, as que foram herdadas, as que foram captadas por fusões ou aquisições, e essa lógica serviu para a estrutura. Na verdade, foi uma feliz coincidência, pois aquele texto produzido há tantos séculos acabou se aplicando de uma forma muito fácil para a realidade de hoje. A obra tem um capítulo que ressalta quais seriam as razões pelas quais um príncipe obtém sucesso dentro do seu principado, o que não foi complicado de adaptar para o nosso mundo corporativo. Ou seja, algumas razões para ser um empresário de sucesso. Maquiavel diz o que você tem de fazer quando invadir outro principado, e isso nada mais é do que as práticas que precisam ser adotadas quando se controla outra empresa. Foram alteradas as palavras, mas mantidos os conceitos.

Um dos pontos do livro de Maquiavel questiona se vale mais o príncipe ser amado ou temido para manter seu poder. O que é melhor e como esse conceito se aplica à gestão de pessoas?
Digo que é melhor ser temido, não resta a menor dúvida. Sempre brinco com meus alunos que temos, aqui, um universo enorme de pessoas boazinhas procurando empregos, e os maus e eficientes estão todos empregados. O amor é tênue, uma coisa muito natural do homem, o respeito por ele é delicado, mas o respeito pela força é muito forte – então, é melhor ser temido do que amado. Nesse caso, a aventura de Maquiavel merece uma atenção grande. Não adianta ser aquele temor imposto pela arrogância de um sujeito que ocupa uma posição e grita. O temor a que me refiro está ligado ao respeito e se impõe pela competência, pela postura. O bom líder não transige, não ri fácil, é sempre justo, é muito exigente e causa certa insegurança nos subordinados, o que é muito bom. Não estou falando no temor causado por gestores que têm arroubos de prepotência. O cargo de gerente, de príncipe, é uma posição perigosa, porque o sujeito começa a se achar Deus e perde a referência com a realidade.

#Q#

Esse temor ao qual o senhor se refere é o respeito adquirido por uma postura de líder.
Sim. Ele é temido pela sua eficiência, porque é justo e presente. Ele conhece os mecanismos e meandros da empresa e dos colaboradores. Tem um conhecimento profundo do serviço que presta. O tipo de temor imposto pelo grito e pelo medo é a derrocada, ninguém consegue respeito pela força. Esse tipo pode até fazer fortuna, mas a glória jamais.

De acordo com O Príncipe, a forma de administração de um Estado deve adaptar-se à população. Como transportar essa ideia à gestão de pessoas?
É preciso ter muito cuidado com tudo o que se faz em relação aos trabalhadores, porque é necessário ser social e eticamente correto. Apesar de hoje se ensinar que a organização tem de ter processos, digo, ao contrário, que a empresa tem de ser um homem. Se não fosse o Rolim Amaro não existiria a TAM. Você tem o Abílio Diniz, o Antônio Ermírio de Moraes e o Sílvio Santos, exemplos de como os grandes homens, os príncipes, são relevantes para o sucesso de uma organização. O contrário é o Banco Real, que mesmo se utilizando  de processos desapareceu e foi comprado por outra instituição. Porém, acredito que, no futuro, os processos vão preponderar. Mas, para isso, a empresa tem de ter uma filosofia e um processo de trabalho e de comportamento, e os colaboradores devem se adequar. Se a empresa não tiver essa massa, com as pessoas trabalhando e pensando a mesma coisa, é muito difícil vencer. O que quero dizer é que as organizações precisam criar uma força de colaboradores que representem um conjunto, e não a ideia individual de cada um.

Por que escolher essa obra para escrever aos empresários?
Pelas referências que tem e pelos conceitos empresariais que carrega. O mundo, hoje, é muito mais duro do que no tempo de Maquiavel. Naquela época havia muito mais respeito pelas pessoas. Atualmente, no ambiente de trabalho, o sujeito se mata de trabalhar e larga a família e o lazer; isso é muito desumano. Nosso livro é todo calcado em ética, justiça, organização e eficiência. Não existem citações no livro de que se deve tirar algo do outro, vender um produto diferente do que você prometeu ou prestar um serviço abaixo do prescrito. Trata-se de um livro que fala como uma empresa prospera sendo justa e, sobretudo, eficiente. Conheça o serviço, o fornecedor, o cliente e os colaboradores, e não tire nada de ninguém, essa é a receita para vencer.

 
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