Novembro Azul

Um dia de cada vez

de Gumae Carvalho em 31 de outubro de 2017

Após um diagnóstico de câncer de próstata, executivo passou a dar
mais atenção ao ritmo orgânico da vida

(Em comemoração ao Novembro Azul, republicamos esta entrevista publicada originalmente no dia 22/03/17)

Foi por meio de um check-up oferecido pela empresa em que trabalhava que Américo Figueiredo, hoje chief operating office (COO) da consultoria Fellipelli, descobriu um câncer de próstata (mote do Novembro Azul). Diagnosticado precocemente, o problema já não assusta o executivo, mas trouxe importantes lições de vida que ele compartilha nesta entrevista, bem como o paradoxo que ele ainda presencia nas empresas: mais necessidade de capital intelectual a fazer frente aos desafios de competição que crescem exponencialmente e uma incapacidade por parte das empresas em como conseguir o melhor das pessoas que delas fazem parte. “Aprendi o que para mim é felicidade e tenho procurado viver mais em sintonia com isso, cada vez mais distante do exibicionismo, da futilidade, do hedonismo, dos jargões corporativos que não produzem um centavo de resultados no balanço das organizações, e só acentuam a infelicidade e as doenças psicossomáticas que têm caracterizado, infelizmente, cada vez mais, as ditas empresas modernas”, diz.

Como foi descobrir o câncer?
Mantenho uma disciplina de cuidados com a saúde que inclui, entre alimentação adequada e a prática de exercícios, a realização de check-ups periódicos. Fui diagnosticado com um câncer de próstata em fase bem inicial quando estava na Nextel. A empresa possuía uma prática de oferecer check-ups para seu grupo de gerentes, diretores, vice-presidentes e para o presidente. Isso me ajudou muito com o que eu já tinha como hábito, desde os meus 30 anos de idade, de, anualmente, realizar um conjunto bem amplo de exames para aferir as minhas condições de saúde. Câncer de próstata é muito comum e o tratamento, hoje em dia, se detectado precocemente, como foi o meu caso, é garantia de praticamente 99% de cura. Obviamente que, uma vez constatada a sua presença, é obrigação acompanhar com a frequência determinada pelo médico urologista; no meu caso, o faço a cada três meses.

Tinha algum histórico na família, já fazia algum acompanhamento ou foi pego de surpresa?
O meu pai teve câncer de próstata, mas faleceu de outras causas. Apesar de eu saber que poderia vir a ter câncer de próstata por questões hereditárias, confesso que fui pego sim, com certa surpresa, tendo em vista minha idade bem como as excelentes condições de saúde e bons hábitos de vida que mantenho há muito tempo. É normal achar que isso vai acontecer apenas com os outros e nunca com você. Apesar de as mais recentes descobertas sobre o câncer de próstata indicarem que ele cresce lentamente, é fundamental esclarecer que isso, de forma alguma, significa que não se deva consultar o médico urologista, bem como manter as rotinas de precaução e detecção como o exame de toque, que deve ser realizado a partir dos 40 anos de idade, ou, em idade a ser definida pelo médico, considerando o histórico familiar, combinado com hábitos alimentares saudáveis bem como a prática de exercícios físicos.

Quais lições teve a partir dessa experiência?
As lições são muitas. Eu já acreditava que o nosso corpo, a nossa vida são os bens mais preciosos a requererem cuidado e atenção constantes. Portanto, dormir bem, alimentar-se corretamente, cuidar da nossa mente, do nosso corpo, da nossa espiritualidade, do nosso ser essencial sempre fizeram parte das minhas crenças e influenciam o meu estilo de vida. Com o diagnóstico do câncer de próstata, ficou ainda mais claro para mim que devemos cuidar de todas as nossas dimensões da vida e, sobretudo, viver um dia de cada vez. Sempre fui um indivíduo muito planejador, que pretendia controlar tudo e hoje me dou conta de que a vida possui uma inteligência superior que nos guia e nos impulsiona. Tenho aprendido a prestar atenção ao ritmo mais orgânico da vida, a sua fluidez, o imponderável, o senso de impermanência da vida.

Houve alguma outra mudança em sua vida?
Sim. Também aprendi a equilibrar melhor os pesos e passei a ter muito mais desapego e foco no que é essencial. Tenho passado por um longo processo de autodesenvolvimento desde 2011 e aprendido muito sobre como funciona nosso ego, como ele é perverso em nos forjar personagens que nos manipulam diariamente. Quando nos damos conta do que o nosso ego nos induz a fazer e como isso interfere em nossas relações sociais, melhora a nossa compaixão para com as pessoas, o nosso grau de empatia com os nossos interlocutores profissionais e passamos a entender melhor o verdadeiro valor do que seja uma vida mais plena e o que faz as pessoas se comportarem do jeito como se comportam. Aprendi que não há culpados. Por último, mas não menos importante, aprendi o que para mim é felicidade e tenho procurado viver em sintonia com isso, cada vez mais distante do exibicionismo, da futilidade, do hedonismo, dos jargões corporativos que não produzem um centavo de resultados no balanço das organizações, e só acentuam a infelicidade e as doenças psicossomáticas que têm caracterizado, infelizmente, cada vez mais, as ditas empresas modernas.

Muito comum entre executivos que realizam check-up é deixarem os resultados de lado e buscarem o médico depois. Que recado daria para eles?
Assumam o comando da sua vida e invistam no seu processo de autodesenvolvimento e autoconhecimento para que possam dar-se conta do poder individual que cada um de nós tem de viver uma vida muito mais plena. O autoconhecimento nos liberta das armadilhas do ego e nos impulsiona em direção a uma vida de mais significados e descobertas sobre a nossa essência e, sobretudo, a nossa integralidade. Estou lendo o livro A doença como caminho, de Thorwald Dethlefsen e Rudiger Dahlke, e nele há uma passagem que ajuda nessa pergunta. Como gestor de pessoas, tenho procurado tratar a importância de as organizações darem espaço para questões que têm a ver com o grau de consciência das pessoas, o bem-estar delas, a sua integralidade, abrir espaço para que elas possam ser elas mesmas, sem as máscaras impostas pelo ego, pelos rituais de poder. Conforme nos ensina Marcelo Cardoso, “a visão mecânica na gestão tem sido incapaz de perceber os aspectos tácitos, sutis, implícitos e subjetivos”. Enquanto isso, temos assistido a uma escalada sem precedentes de pessoas doentes nas organizações. É um verdadeiro engano achar que somente porque fazemos check-up estamos com a saúde em dia. Um belo dia, uma crise irá irromper e a realidade dos fatos irá se impor impiedosamente, seja por iniciativa da empresa, a demitir executivos desleixados com a sua saúde, ou a própria vida a cobrar o seu implacável preço pela nossa arrogância em negligenciar o bem mais precioso que temos.

De um lado, as empresas assistem a um aumento no custo de saúde dos funcionários. De outro, muitas organizações buscam humanizar mais a gestão. Esse é um caminho que contribui para manter a saúde dos funcionários em dia ou esconde algumas armadilhas?
Tenho visto um certo paradoxo no mundo das empresas atualmente. Mais necessidade de capital intelectual para fazer frente aos desafios de competição que crescem exponencialmente e uma incapacidade por parte das organizações em como conseguir o melhor das pessoas que delas fazem parte. Modelos de negócios sofisticados, terminologias e metodologias rebuscadas, uma profusão de slides, siglas, planos, cronogramas, modismos, comitês, campanhas internas de comunicação, frases de efeito, discursos cuidadosamente construídos por assessorias de imprensa, eventos de integração e por aí vai. Apesar de tudo isso, temos visto empresas fracassarem no quesito de saúde organizacional, que privilegia o bem-estar das pessoas e, por consequência, dos negócios. Por muito tempo, acreditei que uma sólida estratégia ancorada em um modelo de negócios consistente, com clareza de papéis e responsabilidades, fosse suficiente para que uma organização alcançasse o sucesso. A maturidade, no entanto, me mostrou a importância de considerar questões mais amplas, que tratam do grau de consciência das organizações, dos seus aspectos mais intangíveis ou sutis: história, credo, valores, propósito, razão maior de ser. O desafio empresarial, a meu ver, não é mais de ordem estratégica; é de elevação de propósitos, ideais nobres que somente podem ser viabilizados com a verdadeira humanização das empresas. E aqui está outro paradoxo, pois ainda utilizamos largamente a expressão recursos humanos e aquela verborragia e modismos como “fazer parte do negócio”, a tal “gestão estratégica de recursos humanos” e tantas outras bravatas. Elas cansam e afastam os verdadeiros talentos de tais estruturas organizacionais.

Quais os efeitos, então, disso?
A combinação perversa dessa suposta falta de humanização a que me refiro tem levado à inviabilidade econômico-financeira dos planos de saúde e a um enorme ceticismo por parte dos colaboradores acerca dos modismos anacrônicos praticados por programas de saúde e bem-estar, que não tratam do ser humano na sua integralidade. As empresas estão doentes, as pessoas estão doentes. Basta ler a sessão de economia dos principais jornais brasileiros e das revistas de negócios para saber o que tem acontecido com os custos médicos das empresas. Simplesmente inviável mantê-los, pois tal falta de humanização desencadeou, por parte dos modelos de gestão, perder de vista que o ser humano é um todo composto de corpo e alma, que forma a sua unicidade. É sabido que a medicina ortodoxa perdeu de vista a totalidade do ser humano. A grande especialização e a análise dos conceitos básicos de pesquisa tiveram como resultado inevitável um maior conhecimento dos detalhes, mas, simultaneamente, perdeu-se de vista a totalidade do ser humano e o que se seguiu foi uma escalada insustentável de custos médicos. Não adianta mudar os planos médicos para opções mais baratas, pois o problema irá se agravar e as consequências para as organizações, serão nefastas, do ponto de vista de saúde organizacional, como mencionei.

As organizações naufragam, então, devido à sua filosofia de gestão?
Sim, ou à carência de uma filosofia. As práticas de gestão, até agora, orientaram-se predominantemente pela funcionalidade e pela eficácia: a falta de uma alma interior e o desrespeito à integralidade do ser humano acentuaram as críticas de falta de humanização nas empresas. Infelizmente, as organizações estão doentes e a tendência é piorar pela total incapacidade de a função de gestão de pessoas, salvo raríssimas exceções, assumir de vez o seu lugar de protagonista na liderança de uma agenda mais humana, que coloque as pessoas no centro da agenda empresarial e promova a humanização do trabalho. Nunca foi tão necessária uma liderança firme, que tenha coragem de resgatar a consciência ética de uma gestão ancorada em valores. Tudo isso naturalmente levará à mesa corporativa questões sobre a alma nas organizações, sua essência maior, avalizando a sua participação no mercado e em relação a seus distintos stakeholders. Bem-vindo à era da gestão holística, mais humana e desprovida de preconceitos.

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