Gestão

Homo blogadus

de Vinícius Gorgulho em 14 de setembro de 2009
Terra, da TerraForum: colaboração não pode ser simplesmente um mantra. Tem de ter objetivos específicos

Em 2008, numa petroquímica de Pernambuco, o especialista em gestão do conhecimento em ambiente web Carlos Nepomuceno faz uma palestra sobre colaboração e as redes corporativas de conhecimento. Ele fala de Capitalismo 2.0 e exalta o uso corporativo de mídias sociais como blogs, wikis e redes de relacionamento do tipo Orkut. Segundo ele, são ferramentas revolucionárias pela capacidade de gerar competitividade com base na gestão do conhecimento colaborativo. Uma funcionária pede a palavra: “É bonito o que você diz, mas ou eu blogo ou trabalho”. Ela usa o neologismo “blogar”: publicar artigos num blog, corruptela de weblog cuja tradução possível é diário de bordo on-line.

Foi um diário de bordo que revolucionou o conhecimento humano há 171 anos. Em 1859, o naturalista britânico Charles Darwin publicava o livro A Origem das Espécies. Sua teoria da seleção natural reviu a evolução da vida no planeta e mudou a antropologia, sociologia, medicina, psicologia, política e teologia.

Isso tudo, entretanto, não teria eclodido sem dois eventos pregressos. Em 1838, o jovem Darwin registrava num diário de bordo, diletantemente, anotações biológicas, geológicas e antropológicas observadas durante cinco anos de viagem ao redor do globo. Esses registros seriam publicados 20 anos depois. No ano seguinte, ele publicaria sua obra máxima sobre seleção natural motivado por uma carta de outro naturalista inglês, Alfred Wallace, que compartilhou com Darwin o fato de ter chegado às mesmas conclusões ao observar fenômenos semelhantes.

O simples registro e o compartilhamento daquele conhecimento tiveram proporções épicas. É o poder da colaboração. “Há uma contradição na ideia de que registrar o trabalho não é trabalhar. Quando aquela menina da petroquímica faz sua produção intelectual, ela chama isso de trabalho. Mas não se entende trabalhando quando está registrando e tornando público seu trabalho. Esse é o grande desafio dos projetos web 2.0 nas empresas. Elas não querem mudar porque quando muda a forma de trabalho você muda a própria empresa”, diz Nepomuceno.

Mas, como no darwinismo, surgem no capitalismo organizações que se mostram interessadas em evoluir para competir. Evolução, para elas, é fomentar a cultura de colaboração que já começa a orientar a gestão do conhecimento em organizações de ponta no Brasil e no mundo. Empresas como a Daiichi Sankyo do Brasil, Ci&T, TerraFórum e o C.E.S.A.R (Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife), cuja base de crescimento é o investimento em inovação, estão colhendo frutos das práticas colaborativas, com engajamento de funcionários, fluência e agregação de valor às trocas de conhecimento e aumento da competitividade. Essas organizações ousaram: adotaram modelos horizontais de troca de informações nos quais promovem a participação aberta de todos os funcionários e estão substituindo suas intranets por plataformas de gestão do conhecimento apoiadas em blogs e wikis.

Pode parecer estranho tratar a colaboração como uma novidade, já que o trabalho corporativo dificilmente acontece sem a troca entre pessoas e equipes. “Luiz Prohmann, do HSBC, lembra que houve uma dissociação entre as palavras ´trabalhar´ e ´colaborar´, que etimologicamente significa trabalhar em conjunto. Ficaram dois verbos diferentes”, conta Nepomuceno. Prohmann é responsável pela implantação de uma intranet colaborativa no HSBC premiada pelo Nielsen Norman Group como uma das 10 melhores do mundo.

Para o diretor de inovação da Ci&T, Flávio Pimentel, o recrudescimento do processo de competitividade intoxicou as pessoas, que internalizaram essa disposição, gerando feudos de departamentos, retenção de conhecimento e trabalho isolado. “A explosão das redes sociais aconteceu porque a sociedade estava carente de conversar e colaborar, que é algo bem básico do ser humano. Agora isso saiu do varejo e entrou no atacado”, diz.

Os especialistas consideram que estamos vivendo um momento de salto evolutivo, de mudança de modelos estruturais, conceituais e culturais. “Nós não estamos numa era de mudanças. Estamos numa mudança de eras”, diz Nepomuceno, parafraseando o norte-americano “apóstolo” da nova economia Chris Anderson, editor da revista Wired e autor dos livros A Cauda Longa e Free.

Ele frisa que a maioria das empresas ainda opera num modelo de conhecimento pré-internet, em que o conhecimento gerado é armazenado no computador de cada funcionário. A colaboração calcada no conceito de Web 2.0 quebraria esse modelo. Na lógica de um blog, um determinado conhecimento pode ser publicado para uma rede de pessoas que podem acrescentar, corrigir, compartilhar novas experiências, visões e links correlatos, qualificar as informações de forma a evidenciar a produção intelectual que tiver mais aceitação coletiva e ser passível de encontrar isso tudo por meio de uma ferramenta de busca.

“Trata-se de transformar conhecimento tácito em explícito”, diz Ricardo Rossi, gerente da divisão de Lotus da IBM Brasil, empresa que adotou como intranet uma rede social criada interna e colaborativamente. A ideia é fazer o conhecimento estratégico se disseminar entre os funcionários e levar ao topo da gestão os conhecimentos e soluções pensadas pela equipe de base.

Essa mesma lógica e a necessidade de criar conectividade, tornando os conhecimentos corporativos homogêneos, moveram a direção da farmacêutica Daiichi Sankyo do Brasil a estabelecer a colaboração aberta de seus 300 funcionários como modelo de gestão de conhecimento. Em 2007, foi decidido coletivamente que as melhores plataformas seriam blogs e a Wikipédia, que ganhou versão interna personalizada, chamada Giimiipedia. Blogs coletivos divididos por temas servem ao compartilhamento de notícias de interesse dos funcionários, desde novidades de mercado e concorrência, até lazer. A Giimiipedia é o local de armazenamento e discussão de informações operacionais relevantes e conta hoje com 985 artigos.
A intranet continua, como um repositório de normas e políticas organizacionais. “Nossa força de vendas está muito mais preparada para conversar com os médicos de forma mais técnica e robusta. Isso, graças à colaboração da unidade fabril, onde há muita gente da área biomédica, que compartilhou conhecimentos na rede”, conta Patricia Yoshioka, membro da equipe de gestão de conhecimento e inovação da Daiichi Sankyo Brasil, cujas ideias foram consideradas pela presidência quando ainda era uma estagiária na empresa.

Desafios
Os especialistas apontam uma premissa para a adoção do modelo colaborativo: coerência por parte da cúpula da empresa, cujos atos devem servir de exemplo e comprovar valores pró-colaboração. “A postura das lideranças deve ser transparente, colaborativa. Tem de viver o conceito. Sem isso, a iniciativa fica vulnerável e o risco, alto. A colaboração deve se tornar quesito de avaliação dos funcionários”, diz José Cláudio Terra, presidente da TerraForum Consultores, empresa especializada em gestão do conhecimento e um dos principais estudiosos da colaboração no ambiente corporativo no Brasil.

Pimentel, da Ci&T, afirma que as lideranças médias também podem pôr em risco o processo de colaboração. “Tradicionalmente, o cara da base pode ter uma ideia excelente que será minada em algum ponto dos vários níveis hierárquicos. O modelo 2.0 elimina intermediários”, diz.

O conservadorismo e o preconceito também são apontados como grandes riscos. Masukieviski Borges, analista de inovação do C.E.S.A.R., que desenvolve sistemas inovadores, entre eles uma rede social que funciona como a intranet da organização, destaca a imagem ruim que o uso do Orkut no Brasil acabou atribuindo às redes sociais. “Falsos testemunhos, agressões on-line, perda de privacidade, paquera e voyeurismo acabaram ficando encalacrados no imaginário das pessoas. O empresário pensa que rede social é perda de produtividade. Mas feito de forma estruturada é o contrário”.

Há 30 anos, questionava-se se haver um ramal de telefone por pessoa não prejudicaria a produtividade na empresa. “Recentemente, questionaram os programas de mensagens instantâneas como o MSN. Agora são as redes sociais”, diz Rossi, da IBM.

A solução, segundo ele, reside em grande parte numa gestão de mudança cultural. “As empresas precisam amadurecer. Mas, para haver uma transição cultural, é importante contar com o apoio de consultorias externas. Santo de casa não faz milagre”.

O milagre é dar voz à base e mexer na estrutura de poder da empresa de forma pertinente e pensada. Para Nepomuceno, após a decisão de adotar o modelo colaborativo e horizontalizar o poder, é preciso definir como a empresa passará a se relacionar com os colaboradores, oferecendo remuneração coerente com a nova contribuição criativa. “A colaboração voluntária depende do ambiente que você cria para o funcionário e também do compartilhamento do poder e do capital. O funcionário passa a ter uma visão mais próxima do acionista. As empresas do Vale do Silício já estão altamente preparadas para esse novo mundo. O Google, por exemplo, é praticamente uma universidade, tem espaço de lazer, dá 20% do tempo do funcionário para ele criar o projeto pessoal que quiser. E além do salário oferecem aos funcionários opções de compra de ações com um preço abaixo do mercado.”

Para Terra, outro fundamento é fazer com que o modo colaborativo seja adotado em completo alinhamento com uma visão estratégica. “Colaboração não pode ser simplesmente um mantra. Tem de ter objetivos específicos, saber que tipo de colaboração é mais importante para o negócio.”

Outro erro é achar que o condicionamento cultural é exclusividade das organizações. Após décadas mergulhados no modelo antigo, os funcionários também precisam aprender a pular do fundo do mar para a terra firme. “Esses processos precisam ter governança, serem educativos e estruturados com mecanismos de animação. Estimular o uso dessas ferramentas colaborativas provoca a criatividade em prol da inovação”, afirma Terra.

Pimentel, da Ci&T, destaca a importância de se promover a postura agregadora de proposição de soluções estratégicas. “E não a mera crítica a ideias apresentadas. Participar competitivamente para mostrar que ele é o bom é uma postura totalmente oposta à colaboração. A competição não pode ser interna”, afirma.

Um dos segredos do fracasso, segundo Nepomuceno, é tentar implementar o processo de uma só vez em toda a empresa. “Se não há uma forte cultura de colaboração, comece por quem já é predisposto ao novo modelo.”

Retorno sobre o investimento
O início por etapas pode também favorecer a obtenção de indicadores de resultados para apoiar o investimento nesse tipo de projeto. Devido à novidade do modelo, a maioria das empresas ainda encara como difícil a avaliação e o monitoramento dos processos colaborativos. Terra garante que a medição do ROI é viável, mais simples do que parece e fundamental para dar sustentabilidade ao processo colaborativo. A transferência de conhecimento, segundo ele, envolve métricas de input, de processo e de resultado. “Em input, você verifica quantas pessoas participam da colaboração, quantos estão envolvidos, com que frequência participam. Métricas de processo têm a ver com medir quanto tempo as pessoas levam para responder a uma questão levantada, à animação da rede. Os indicadores de resultado informam em que medida as discussões geradas contribuíram com ganhos financeiros ou de produtividade. Numa fábrica de grande porte, 1% de aumento de produtividade representa milhões em dinheiro”, diz.

A era do diálogo chegou para ficar? Para Nepomuceno, a mudança é inapelável e todos terão de entrar na fila, mesmo que daqui a 30 anos. “Há uma fila em que 90% das pessoas não perceberam que existe. É um processo de mudança da plataforma de conhecimento mundial. Você decide se quer entrar agora ou depois. Há ônus e bônus para os primeiros e
para os últimos.”

Portanto, se a expedição de Darwin cruzasse os mares hoje, ele provavelmente “blogaria” seus registros de viagem em tempo real, teclando de um dispositivo móvel com conexão por satélite. Adicionado aos seus “amigos”, Wallace poderia “viralizar” a descoberta de Darwin, provocando a comunidade científica numa rede social multicanal que envolveria, além dos meios acadêmicos, o LinkedIn, Facebook e Twitter. Em vez de levar 20 anos, o mundo poderia ser transformado em minutos.

Ferramentas para uma Empresa 2.0

Entenda os recursos que podem fazer de sua empresa uma rede colaborativa

Wiki
Software gratuito que permite a publicação de conteúdos (textos, áudio, vídeo etc.), via navegador web, por qualquer pessoa inscrita. Sua lógica favorece a criação de tópicos, revisão e edição coletivas de qualquer conteúdo inserido. É o sistema da Wikipédia.

Blog
Site cuja estrutura permite sua criação e atualização rápida a partir de acréscimos de artigos, ou posts, por uma ou mais pessoas inscritas. Pode combinar texto, imagens e
links para outros blogs e
páginas da web. Seus leitores podem comentar o conteúdo, interagir com os autores e oferecer conexão para seus próprios blogs.

Microblog
É um blog minimalista, que oferece espaço limitado a poucas dezenas de caracteres por post para a publicação de textos, imagens e links. O mais popular é o Twitter. Segue a lógica de mensagens curtas como os SMS (torpedos). Alguns podem ser atualizados via celular. Ótima forma de compartilhamento de informações curtas, favorece a replicação do conteúdo de posts de outros usuários.

Web 2.0
Termo criado para designar uma nova abordagem de utilização e desenvolvimento da web como plataforma de compartilhamento e agregação de conteúdos. Integram o conceito sites e recursos que fomentam a inteligência coletiva ao tornar a experiência do usuário tanto melhor quanto mais ele interagir em rede.

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