Todos compungidos.
O governador disse que qualquer um sabia que um acidente poderia ocorrer,
O prefeito disse que Corpo de Bombeiros e Polícia são instituições estaduais, e não municipais,
O advogado disse que oinvestidor não tinha atuação gerencial, e que o incêndio foi uma fatalidade;
O vendedor disse que alertou sobreo uso exclusivo daquele artefato pirotécnico em ambientes abertos,
O representante do Corpo de Bombeiros disse que há milhares de pedidos e que as inspeções podem levar mesese que vai instaurar inquérito para determinar as responsabilidades da instituição,
O produtor de espetáculos disse que a Prefeitura não tem moral para fechar casas,
O diretor de teatro disse que está havendo paranoia,
O músico disse que o extintor de incêndio não funcionou.
Pano rápido:
Matheus Rafael Raschen, 20 anos, e mais 235 pessoas morreram em Santa Maria.
Como fatalidade?
Não se trata de uma indignação pequeno burguesa, provocada pela rigidez moral da classe média. Nós também cometemos nossos delitos. Levante a primeira pedra. Também não se trata de uma tragédia localizada. Há algo maior por detrás disso tudo.
Quem é o governante que se coloca acima do interesse público, jamais assumindo sua cota de responsabilidade?
Quem é a burocracia que leva meses paradecidir sobre um alvará? Em seu nome, todos os pecados parecem ser permitidos. É fácil culpá-la, porque não tem carteira de identidade nem CFP. Seus agentes escondem-se na distinção entre pessoa e papel, sendo todos excelentes pais de famílias, o que não impede de administrarem irresponsavelmente o bem público.
Quem é o investidor que não interfere na gestão, especialmente num micro negócio como a boate Kiss? Uma empresa é algo que se justifica na medida em que atende a uma necessidade da sociedade, no caso o entretenimento. Se é o investidor que viabiliza um projeto, como isentá-lo de suas consequências?
Quem é o gestor que mantém a casa cheia deixando de prover serviços básicos de segurança e proteção ao cliente?
Quem são produtores e diretores que transferem para o Estado responsabilidades que também são suas?
Quem somos nós, que choramos as tragédias, achando que sempre acontecem com os outros ?
Choramos em conforto.
Muitas são as filosofias que tratam dos valores na vida, mas nenhuma pode excluir a nossa relação com a sociedade. Cidadania é uma expressão política, em seu melhor sentido, que nos torna protagonistas em todos os sistemas em que atuamos. Não dá para lamentar e ficar por isso mesmo, até que um novo evento provoque nossa indignação.
Somos limitados, vulneráveis, frágeis, mas também pessoas que não podem se dar o luxo de achar que tudo o que acontece de errado está nos outros. Impotência não rima com democracia. Valor não rima como torpor. Como disse Pascal, o todo está na parte.
Em Santa Maria, perdemos 1/236 de nossas vidas.
E depois?
Até quando?